A Vida, o Universo e Tudo o Mais

quarta-feira, março 30, 2005

A Vila

Imagine que você é um jovem, na casa dos 20 e poucos anos. Imagine que você mora numa Vila do começo do final do século XIX. Imagine que você não pode sair dos limites da sua Vila porque criaturas que habitam a Floresta em volta não permitem. Existe uma "trégua" entre os habitantes da sua Vila e as criaturas da Floresta: você e seus concidadãos não entram nas matas, não usam vermelho, a cor proibida, e, em contrapartida, as criaturas se mantém no seu habitat, sem atacar os moradores.

Sendo esse jovem de 20 e poucos anos, chamado Lucius Hunt, você vê medicamentos acabando, crianças morrendo por doenças controláveis por medicamentos disponíveis nas "cidades" fora da Floresta. Você acha que deve ir buscar tais medicamentos, tem certeza que as criaturas irão permitir sua passagem ao saber de suas boas intenções, mas, ainda assim, você respeita as instituições e só irá se os "mais velhos" dentre os moradores da Vila permitirem. Mas os "mais velhos" não permitirão sua saída porque fizeram um juramento de que ninguém na Vila voltaria à violência das cidades. Você parece ser a única pessoa da Vila diposta a encarar os perigos da Floresta para ajudar seus concidadãos. Mas... E se você precisasse de tais medicamentos, os "mais velhos" deixariam alguém atravessar a Floresta, em busca da cura? Existiria alguém disposto a correr os riscos? As respostas as estas perguntas (e outras perguntas mais graves ainda) estão no último filme de
M. Night Shyamalan, A Vila, de 2004.

Devo confessar, agora, que não fui ver o filme nos cinemas por conta da minha decepção com
Sinais, mas que, assim que A Vila saiu em DVD, decidi assistir. Encabeçado por um elenco de primeira linha, composto por, entre outros, Joaquin Phoenix (Lucius Hunt), Adrien Brody (Noah Percy), William Hurt (Edward Walker), Sigourney Weaver (Alice Hunt) e pela espetacular novata Bryce Dallas Howard (Ivy Walker), em seu primeiro papel principal, o filme conta a estória de um grupo de famílias que vivem em uma vila isolada do mundo para fugir da violência das cidades, circundada por uma floresta na qual vivem criaturas míticas. Os dois grupos convivem pacificamente, respeitando algumas regras:
  • Os humanos não entram na Floresta;
  • Os humanos não podem usar a cor proibida, o vermelho;
  • Os monstros não passam dos limites da Vila.

Esse contexto, nas mãos do diretor indiano, resulta no seu melhor e mais equilibrado filme. A tensão e o medo presentes em O Sexto Sentido estão presentes, bem como a dualidade presente em Corpo Fechado. A Vila cumpre tudo o que Sinais prometeu mas foi incapaz de cumprir, na minha opinião por conta do papel principal ter sido dado à Mel Gibson. Joaquin Phoenix tem mais uma atuação primorosa e conduz o filme de maneira sutil e poderosa. Adrien Brody, como Noah, merece toda a atenção do espectador pela sua atuação maravilhosa. William Hurt, Sigourney Weaver e os demais atores dão vida e múltiplas dimensões aos seus personagens, compondo o profundo quadro do filme. Mas o grande destaque do elenco vai para a novata Bryce Dallas Howard, que retrata a jovem Ivy Walker de maneira tocante.

O roteiro do filme é surpreendente, como seria de se esperar de Shyamalan, mas é também equilibrado, com profunda atenção aos personagens e suas características. O diretor toma a opção de não enganar o espectador. Ao menos, nosso conhecimento da verdade é tão grande quando o de Lucius e Ivy. Além disso, o roteiro discute temas bastantes presentes no nosso dia-a-dia, incluindo aí a violência cotidiana e nosso desejo de se salvaguardar dela. Apesar do que muitos disseram da surpresa final ser fraca ou decepcionante, o final da estória, que se desenha aos poucos durante o filme, é o mais forte da carreira do diretor, embora seja o de menor impacto.

A Vila é um filme que prende o espectador pela sua estória de suspense bem escrita e dirigida, pela doçura e humanidade dos personagens, e pelas situações e soluções que propõe ao espectador atento. O último filme que me fez refletir tanto em relação à estória em si e ao significado da metáfora por muito tempo foi O Sétimo Selo. Além de tudo isso, Shyamalan conseguiu escrever aquela que hoje eu considero a melhor cena de declaração de amor de todos os filmes que já vi. Isso não é pouco. Este é o melhor filme de M. Night Shyamalan.

sexta-feira, março 04, 2005

A Sangue Frio - Até o fim

Molecada, fiquei em débito com vocês sobre minhas aventuras no mundo de A Sangue Frio, do Truman Capote. Não consegui, simplesmente não consegui escrever nada enquanto estava lendo. Terminei na madrugada de ontem para hoje, finalmente. Foi quase um parto!

O livro é fabuloso! A estória é completamente dolorosa, de qualquer lado que você olhe, e no final eu já não sabia o que pensar: quem deles deveria ser enforcado? Quem matou realmente? Dick e Perry, ou somente Perry? Isso é realmente importante? Ficaram mais perguntas que respostas a respeito do homícidio múltiplo.

Mas deixa eu falar das três partes seguintes do livro e depois eu volto às perguntas que ficaram na minha cabeça.


Pessoas Desconhecidas

Nestas parte, o autor apresenta os dias que se seguiram ao assassinato da família, enfocando o sofrimento das pessoas próximas, os primeiros passos da investigação do assassinato, a falta de pistas e o dia-a-dia de Dick e Perry após deixar a cidade onde mataram os Clutter.

Com isso, ficamos conhecendo mais a fundo, da perspectiva de Capote, cada um dos personagens dessa estória. Focando principalmente na fuga dos assassinos, nas motivações, nas possibilidades de cada um deles. Apesar de assassinos, o autor os apresenta também em suas faces humanas, no sentido filosófico que nós conhecemos. No final das contas, enquanto Perry e Dick vão ao México, gastam todo o dinheiro arrecadado com roubos e voltam para os Estados Unidos, descobrimos o quão humanos eles são e, com isso, ficou na minha cabeça a seguinte pergunta: Quantos de nós seriam capazes de levar outra vida em frente, com os caminhos pelos quais Dick e Perry passaram? Para nossa sorte, parece que a maioria das pessoas não toma esse caminho.

Não senti compaixão dos assassinos, mas fiquei pensando, mais uma vez, se a pena capital é a solução para tais crimes.


Resposta

Na terceira parte, Capote, mostra a descoberta das primeiras pistas sobre a identidade dos assassinos, o avanço da investigação das pistas, o retorno de Perry e Dick aos Estados Unidos, passando pelo Kansas onde os crimes foram cometidos até serem presos em Las Vegas e extraditados para o Kansas para o julgamento.

Nesse meio tempo, Truman nos oferece um passeio um pouco mais fundo na alma dos dois criminosos, indo desde a compulsão pedófila de Dick à personalidade dividida de Perry, capaz de cometer tais crimes mas ainda assim sem querer que suas vítimas passem por desconfortos outros que não o sofrimento da morte anunciada. Os depoimentos dos dois são profundamente chocantes e aviltantes. Fica a mesma pergunta que a Clara, do Garotas que Dizem Ni, se faz em seu texto: Por que os dois mataram os Clutter?

Em seguida, o escritor descreve a chegada dos presos à Garden City, vizinha de Holcomb, onde os Clutter foram mortos, contrastando o alvoroço inicial da imprensa, talvez tão à espera de sangue quanto o autor, com a reação dos moradores da cidade: entre incrédulos e chocados, sem espaço para vingança além daquela proporcionada pela justiça.


O Canto

A quarta, e última, parte do livro narra o período antes do julgamento dos assassinos, quando o autor "passa" a palavra à senhora Josie Meier, esposa do sub-xerife de Garden City e moradora da Residência do Xerife, no mesmo prédio do tribunal e da cadeia do condado de Finney. A sra. Meier, a seu modo, traça um perfil dos dois homens enquanto se acostuma com eles.

A seguir, o julgamento é narrado nos termos dos depoimentos mais importantes, incluindo o de um antigo conhecido de Perry Smith, Don Cullivan, diante de quem Perry assume não ter nenhum arrependimento pelos crimes cometidos. Perry e Dick são condenados à morte por enforcamento.

Com a condenação, Capote apresenta o período que os dois criminosos permanecem presos enquanto a data da execução vai sendo adiada. Por fim, os dois são executados na madrugada de 14 de abril de 1965, quase 6 anos após o assassinato da família Clutter.


E agora?

Quando comecei a ler o livro, minha intenção era apresentar um "passo-a-passo" da minha leitura, sem maiores pretensões. Mas, como quase sempre, as coisas não andam no compasso que desejamos e me vi tomado pela brutalidade dos crimes, pela dor dos vizinhos e amigos da família, pela dúvida quanto ao desfecho da estória, ao conhecer a vida dos criminosos. E principalmente pela questão que, na minha opinião, perpassa todo o livro: Perry Smith e Richard Hickock são monstros desalmados, cada qual com sua perversão, seu quinhão de violência? Ou dois seriam também vítimas, responsáveis pelos seus atos, mas ainda assim vítimas daquilo que a vida ao seu redor lhes ofereceu? Acho que nenhuma das duas perguntas é capaz de nos guiar para entender os acontecimentos de 14 de novembro de 1965.

Em que pesem as dúvidas levantadas sobre a credibilidade de Truman Capote ao escrever seu romance-reportagem, em que pese a perceptível intenção, até certo ponto, de humanizar os assassinos, A Sangue Frio é um doloroso passeio pelas extensões da alma humana, como já disse antes, e deve ser lido por qualquer um que se interesse em entender como o mesmo ser humano capaz de desejar aproximar-se do ideal filosófico de humanidade é capaz de cometer atos brutais como os de Smith e Hickock.

terça-feira, março 01, 2005

A Sangue Frio - Os últimos a vê-los com vida

Antes de começar este texto, deixa eu comentar duas coisas importantes. A primeira, até ler este texto, no Garotas que Dizem Ni, eu não conhecia o livro A Sangue Frio. Se ouvi ou li algo sobre ele, simplesmente apaguei da minha memória. A segunda é que até então, eu não sabia quase nada sobre Truman Capote, exceto o nome e o fato de que uma foto dele ilustra a capa do single The Boy With The Thorn in His Side, do The Smiths.

Dito isto, devo dizer que depois que li o texto, fiquei extremamente curioso sobre o livro. Tenho uma compulsão em entender porque alguns dos nossos semelhantes tomam a trilha dos dois assassinos do livro. Isso me fez comprar o livro na primeira oportunidade e começar a lê-lo quase compulsivamente.

O livro, se você leu o texto da Clara já sabe, trata do assassinato da família Clutter, pai, mãe e dois filhos adolescentes, na cidadezinha de Holcomb, no Kansas, em novembro de 1959, por Perry Smith e Richard Hickock (Dick). Truman Capote, que se orgulhava de ter criado um novo gênero literário com este livro, passou um ano e meio morando na cidade e conversando com os moradores, policiais e com os assassinos, sem uso de notas ou gravador. Passou cerca de 5 anos mais para reunir todas as informações e escrever o texto, originalmente publicado na revista The New Yorker, em quatro partes, em 1965, e lançado como livro no ínicio de 1966.

Quando comecei a ler o livro, tinha a intenção de fazer pequenos posts comentando minhas impressões no dia-a-dia da leitura. Não consegui. Não dava para largar o livro meia hora antes de ir dormir para escrever. Se você, como eu, gosta de estórias policiais e pensa que a realidade pode ser mais cruel que qualquer escritor, sua reação pode ser parecida com a minha. Decidi comentar minhas impressões após acabar de ler cada parte do livro.

Os últimos a vê-los com vida é o título da primeira parte do livro, onde Capote narra, a partir das entrevistas, o último dia de vida da família Clutter, bem como a preparação de Perry e Dick para um "trabalho". Ocorre que esse trabalho, planejado com antecedência, inclui o assassinato de qualquer testemunha. A primeira parte termina com a descoberta do crime, na manhã do domingo seguinte à chacina e mostra as primeiras reações das pessoas da cidade.

Truman retrata a família Clutter e os assassinos como extremos de um mesmo mundo, ao menos nesta primeira parte, ambos decididos a construir o seu futuro sobre suas premissas e com consciência disso. Já sabemos como a estória termina, Capote tenta nos mostrar o que está oculto no caminho que leva ao desenlace que conhecemos.

A Sangue Frio é um livro denso, poderoso. A construção do texto como um "romance de não-ficção", conforme definido pelo autor, torna-o forte, encantador e assustador ao mesmo tempo. Parafraseando Matinas Suzuki Jr, autor do posfácio da nova edição brasileira e coordenador da série Jornalismo Literário, da qual o livro faz parte, nem tudo é verdade, apesar de verdadeiro. É um livro para ser devorado sem perder de vista que o cerne da alma humana está ali exposto com todas as suas contradições.